MATERIAL PARA O SEGUNDO ANO DO CIEP 331
Noite de
Almirante - Machado de
Assis
Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do
arsenal de marinha e se enfiou pela rua
de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de
mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma
longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou
licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar!
ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante,
como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em
terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se
Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido.
Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal
ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o
acompanharia para a vila mais recôndita do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso;
Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez
meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento
de fidelidade.
- Juro por
Deus que está no céu. E você?
- Eu também.
- Diz direito.
- Juro por
Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade
de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal
separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal
aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". [...]
Nisto [Deolindo] chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu
com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que
veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente,
perguntou por Genoveva.
- Não me fale
nessa maluca, arremeteu a velha. [...]
- Mas que foi?
que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma
dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava
com a cabeça virada...
- Mas virada
por quê?
- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo,
mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro.
Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga.
[...]
- Onde mora
ela?
- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula
pintada de novo. [...]
- Que é isso?
exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo. [...]
- Sei tudo, disse
ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo
levantou os ombros.
- Fosse quem
fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a
verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a
ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava
que era homem de juízo. Contou-lhe então
tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até
que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia
que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe
tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo. [...]
A esperança,
entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para
sair. [...]
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta
para lhe agradecer ainda uma vez o mimo [um brinco], e provavelmente dizer-lhe
algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe
ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do
marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um
sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o
rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra
metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e
barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o
gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente
simpático.
- Muito bom
rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
- Que foi?
- Que vai
matar-se.
- Jesus!
-
Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não
faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito
engraçados.
- Eu aqui
ainda não vi destes.
- Nem eu,
concordou Genoveva, examinando-os à luz. [...]
A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte,
alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de
almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se
chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito
e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve
vergonha da realidade e preferiu mentir.
A
causa secreta
Machado
de Assis
[...] Garcia tinha-se formado em
medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola,
encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava,
quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; [...] Decorreram algumas
semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de
vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde
vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam,
escada acima, ensangüentado. [...] Deposto o ferido na cama, Garcia disse que
era preciso chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa [...]
Garcia estava atônito. Olhou para
ele, viu-o sentar-se tranqüilamente... [...] A sensação que o estudante recebia
era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; [...] Fortunato saiu pouco
antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e,
antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. [...] Tudo
isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar
os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, [...] de
penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. [...]
Tempos depois, estando já formado [...] encontrou Fortunato em uma gôndola,
encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia
Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. [...] Garcia foi lá
domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em
companhia da senhora, que era interessante. [...] Garcia pôde então observar
que a dedicação ao ferido da Rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas
assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos
fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou
repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite.
Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações,
e nenhum outro curava os cáusticos. [...]
Dois dias depois, [...] Garcia foi
lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele
caminhou para ali: ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía
aflita.
— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! O rato! exclamou a moça
sufocada e afastando-se.
Garcia... Viu Fortunato sentado à
mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito
de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda
segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita
tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato
uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não
matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a
primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de
alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações
supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o
mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado,
chamuscado, e não acabava de morrer. [...] Faltava cortar a última pata;
Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata
caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta
vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse,
alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar
a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio;
tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo [...] A chama ia morrendo, o
rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra;
Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a
carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa
mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se deu com o médico e teve um
sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o
papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva",
pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só
a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
[...] Quando Maria Luísa voltou ao
gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e
falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!
[...] Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e
mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos
ainda trêmulos [...]
A causa secreta
Machado de Assis
[...]
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando
ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da
Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; [...]
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando
ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro
andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens
conduziam, escada acima, ensangüentado. [...] Deposto o ferido na cama, Garcia
disse que era preciso chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa [...]
Garcia
estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente... [...] A
sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de
curiosidade; [...] Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes,
mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao
obsequiado onde morava. [...] Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía,
em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha
o amor da análise, [...] de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o
segredo de um organismo. [...] Tempos depois, estando já formado [...]
encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a
freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo
ali perto, em Catumbi. [...] Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom
jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era
interessante. [...] Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da Rua
D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste
homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não
conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a
qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato
estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. [...]
Dois
dias depois, [...] Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato
estava no gabinete, e ele caminhou para ali: ia chegando à porta, no momento em
que Maria Luísa saía aflita.
—
Que é? perguntou-lhe.
— O
rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia...
Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual
pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o
índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado
pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou,
Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a
chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois
já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já
vai.
E
com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a
delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao
rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável
estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer.
[...] Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar,
acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o
rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais
rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia,
defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do
homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo
[...] A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de
vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela
última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e
arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se deu com o
médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal,
que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga
sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação
de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
[...]
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela,
rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
—
Fracalhona!
[...] Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e
mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos
ainda trêmulos [...]
O
Mulato
Aluísio
Azevedo
1
Era
um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia
entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras
escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes,
as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se
mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os
prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam
sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos
não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os
pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.
A
Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e
janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica
e aflautada, de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do
outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira,
sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em
tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!’’ Era uma
vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo
costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a
pele crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam,
empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de
sair, atravessava a rua, suado, vermelho, afogueado, à sombra de um enorme
chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam
gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os
mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: “Arroz
de Veneza! Mangas! Mocajubas!” Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um
cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o
balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e
espalmado pé descalço. Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons
invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do
mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase
todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris
trêmulos e as tetas opulentas.
A
Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade,
porque era aquela hora justamente a de maior movimento comercial. Em todas as
direções cruzavam-se homens esbofados e rubros; cruzavam-se os negros no
carreto e os caixeiros que estavam em serviço na rua; avultavam os
paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos sovacos por grandes
manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do sol, os
negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes,
os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a
biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da
musculatura, como se estivessem a comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das
amendoeiras, nas portadas dos armazéns, entre pilhas de caixões de cebolas e
batatas portuguesas, discutiam-se o câmbio, o preço do algodão, a taxa do
açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais; volumosos comendadores resolviam
negócios, faziam transações, perdiam, ganhavam, tratavam de embarrilar uns aos
outros, com muita manha de gente de negócios, falando numa gíria só deles
trocando chalaças pesadas, mas em plena confiança de amizade. Os leiloeiros
cantavam em voz alta o preço das mercadorias, com um abrimento afetado de
vogais; diziam: “Mal-rais“ em vez de mil-réis. À porta dos leilões aglomeravam-se
os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria um quente e grosseiro
zunzum de feira.
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